terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Gato Metafísico

OS DOIS “RAMOS”


Gosto de imaginar a arte como uma imensa árvore de copa bem frondosa, em cuja acolhedora sombra meu espírito repousa. E, aqui, neste texto, quero repousar minhas considerações sobre duas expressões artísticas de dois “Ramos” dessa árvore: uma do ramo literário e a outra do ramo pictórico. Porém, adianto, o fim primeiro deste texto é a tentativa de compreender uma determinada pintura.

Na obra “Angústia”, de Graciliano Ramos, o personagem central Luís, ao sabor de um estado psicológico ambivalente e angustiante, no momento em que está roubando as moedas de uma pobre velha, vê um gato sobre o muro. E aqui está a sua percepção daquele felino: “Mexia-me, e não podia desviar os olhos das duas tochas que me espiavam por cima do muro.” [...]. “Os olhos do gato cresciam, cresciam extraordinariamente, iluminava o quintal todo.” Como vimos, a situação psicológica de uma pessoa pode ser determinante para a forma como ela percebe o que está na mira de seu olhar. O momento difícil em que se encontrava o personagem Luís, com sua consciência recriminando seu próprio ato indigno, emprestou à sua percepção toda uma maneira peculiar. É claro que, por trás dessa percepção do personagem, enxergamos a centelha do talento do autor: o gato com suas bolas de fogo contém um simbolismo - o peso da consciência.

Entretanto, há muitos casos em que a percepção se entrega mais aos cuidados da objetividade. Só que, mesmo nesses casos, o modo de perceber a realidade pode variar de pessoa para pessoa, pois a percepção sempre é fruto de um movimento que parte do indivíduo e repousa sobre um objeto, razão pela qual o modo como ele o apreende também se cerca de elementos subjetivos, por mais esforço que faça para dar ao seu olhar o máximo de objetividade. Ademais, a percepção, além de valores internos – subjetivos -, possui também componentes constitutivos que são externos: valores de ordem histórico-culturais.

Na minissérie “Berlin Alexanderplatz”, de Fassbinder, um ato de uma personagem obteve três percepções distintas: alguém considerou que ela dançou; um outro julgou que ela andou e um terceiro, que ela marchou. Como vimos, a percepção ocorre em forma de linguagem. Na famosa obra de Cervantes, Sancho Pança olha para um moinho de vento e vê um moinho de vento, enquanto Dom Quixote o olha e vê um gigante malfazejo. Todavia, mesmo Sancho vendo um moinho, sua percepção não está de todo purificada de elementos subjetivos: ele pode ter visto um moinho bonito, um moinho feio, um moinho imenso, um moinho pequeno, sendo que a sua percepção está estreitamente vinculada à sua experiência de vida, a saber, à experiência de já ter visto outros moinhos.

A percepção de uma obra de arte, claro, amplia mais ainda essa diversidade perceptiva. A realidade, como sabemos, está cercada de elementos objetivos, ao passo que a arte perde esse contato com a objetividade. A Pintura, por exemplo, em sua modalidade figurativa, remete ao real, mas, de uma forma ou de outra, burla a sua lógica, as suas leis. E, nisso, surgem mais fissuras por onde elementos subjetivos do observador se infiltram para compor uma percepção bem própria.

E um bom exemplo desse se insurgir contra a lógica da realidade pode ser encontrado em uma determinada tela de Sérgio Ramos. Ao entrar, pela primeira vez, no atelier virtual desse artista, deparei-me com imagens de alguns de seus belos trabalhos. Meu olhar, que, simultaneamente, captava uma multiplicidade pictórica, foi atraído pela imagem de uma pintura em especial: uma pintura em que há um certo gato. De imediato, ocorreu algo interessante na relação que se estabeleceu entre o meu gesto de olhar e a imagem colhida por esse gesto. Explico: tive a sensação de ser intimado a entrar em um espaço onírico, em perder total contato com a realidade que me cercava. Foi como se aquele gato, durante o tempo em que o contemplei, me privasse do mundo físico, envolvendo-me em seu mundo de devaneio. A natureza do universo pictórico da tela me apanhou do mundo real em que estava e me introduziu em seu interior. Como escreveu Walter Benjamin, “quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve”. O interessante é que essa não foi a obra de Sérgio de que mais gostei, mas foi a obra em que mais me “dissolvi”. Foi como se eu não conseguisse fixar-me na posição de observador, mantendo diante da imagem a minha autonomia. Não consegui conjugar o deleite estético com reflexão sobre a pintura. No momento, não conseguia reunir em palavras as sensações desencadeadas em mim pela percepção dessa obra. Somente dias depois, é que consegui me recompor, me “afastar” um pouco para projetar sobre ela o meu pensamento.

Apesar de sua fixidez na tela, o gato se me apresentou como fugidio, volátil. Talvez fosse mais correto dizer que minha percepção é que se moveu, pois vi um gato que saltava, depois, um gato que levitava, depois, um gato que evadia da realidade para o sonho e, finalmente, um gato totalmente puro de qualquer contato com o nosso mundo físico. E somente agora é que pude desbastar a bruma que envolvia esse meu movimento perceptivo, porque, no momento da apreensão, não compreendia bem o que estava se passando comigo.

A sua natureza vaporosa, portanto, pôs minha percepção em movimento. E o que dizer de seu modo displicente e até indiferente de nos olhar? Onde está o “pulo do gato” do talento de Sérgio? A meu ver, está no olhar do gato que desenhou: não somos nós apenas que, por um lado, olhamos um gato que está imerso em seu mundo onírico, mas é o gato que, por outro lado, de seu mundo, nos olha e nos observa, dando a seu gesto um certo ar de enfado. Seus olhos, pois, sendo apagados, não são bolas de fogo como os do gato do romance já mencionado. Mas, não é um gato que está alheio à nossa realidade. Pelo contrário, ele a olha, mas a olha não como se olhasse para um rato ou para um cachorro, mas como se olhasse para uma gaiola vazia.

Observei que a composição pictórica dos pés e das mãos, a posição do rabo e a altura do chão do qual está (essa noção de distância do solo – se é que há solo – é determinada pela rala vegetação) são o que dão ao felino a aparência de um gato que flutua, de um gato transcendente que, a qualquer momento, parece querer se esfumar.

Para minha surpresa, quando, minutos depois de contemplá-lo, cliquei sobre a sua imagem, li o seu título: “Gato metafísico”. É interessante quando um artista consegue despertar, nos observadores de suas obras, reações tão interessantes. O gato do romance do escritor Ramos parece ser um gato sobrenatural que invade a realidade. Já o gato do pintor Ramos não invade nossa realidade, mas, como é dotado de natureza platônica, parece olhar, com certo descaso, para nossa realidade imperfeita e degenerescente.

Alguém pode indagar: será que o autor teve todas essas intenções? Creio que a pergunta mais apropriada seria a seguinte: será que a pintura recepciona essa interpretação? Mas poderemos, claro, falar em intenção autoral. Seguramente, poderemos afirmar que Sérgio Ramos teve a intenção de pintar um gato que tivesse um caráter volátil, totalmente apartado de nosso mundo físico, um gato que mexesse com nossa percepção. Tanto é que, mesmo desconhecendo seu título, percebi, desde o início, essa natureza no referido felino. E o próprio título também aponta para essa intenção do autor.

Com o gato que olha para o lado direito, Sérgio Ramos, acredito, também teve a intenção de provocar, no observador, uma certa inquietação. O autor sabia exatamente que o efeito de um gato que olhasse para a frente não produziria o mesmo efeito de  um gato cujo olhar se dirigisse para o observador. Do mesmo modo, poderemos afirmar que o outro Ramos teve a intenção de conferir um contorno estético ao peso da consciência de seu personagem.

Quanto às demais coisas, não vejo problema em creditá-las à peculiaridade de minha percepção. Se há muita subjetividade em minha tentativa de compreender o “Gato metafísico”, talvez isso tenha sido o resultado mais profícuo. Em certos pontos, posso, então, ter olhado para um moinho de vento e ter enxergado um gigante. Em outros, contudo, posso ter tomado de empréstimo o olhar de Sancho Pança. No entanto, na medida em que a amplitude de sua significação não é fixa, pelo contrário, é vaporosa e escorregadia, talvez a maior virtude da bela pintura de Sérgio Ramos seja exatamente nos encher do espírito de Quixote.

Valendo-me de outros termos, posso afirmar que, em que pese ter muito olhado e refletido sobre o gato desenhado por Sérgio, estou longe de julgar que tenha apreendido o seu “pulo”. Mas, como já nos ensina um adágio popular, o gato ensina tudo, menos o seu pulo. Ainda mais em se tratando de um gato metafísico. Nós, habitantes deste mundo sensível, que, segundo a teoria de Platão, não passa de arremedo do perfeito mundo das ideias, não temos como compreender um gato “platônico”. Então, é melhor até deixá-lo envolto em sua neblina de mistério, porque, assim, sua beleza atinge o infinito. O melhor a fazer, portanto, é olhá-lo sem a pretensão de compreendê-lo totalmente. Talvez até olhá-lo como a criança olha para os vaga-lumes.


RÚBIO ROCHArubiorocha@hotmail.com (amante das artes plásticas, da literatura, da música e do cinema).


sábado, 21 de setembro de 2013

A Craviola


O ENCONTRO DA SINFONIA PICTÓRICA COM A SINFONIA SEMÂNTICA

Casa, craviola, gramofone, peixe, pássaro e folha: em que espaço, em que lugar todas essas coisas se encontram? Para que ponto comum elas avançam? Para que ponto comum, por exemplo, um peixe e um pássaro podem se dirigir? A resposta a essas perguntas, acredito, colocará sob uma clara luz o vigor da imaginação posto em movimento por uma admirável inteligência, cujo resultado é a obra "A Craviola", de autoria de Sérgio Ramos. 

Nessa tela, onde vemos uma criativa riqueza de formas, as imagens são, a um só tempo, imagens, belas por si sós, e invólucros de um determinado conteúdo temático. Com outros termos, as imagens avançam sobre seus próprios limites e atingem o terreno do simbolismo, isto é, revestem-se de natureza simbólica, a qual, portanto, remete a uma outra coisa. Logo, na pintura em apreço, duas coisas convocam a nossa atenção: a beleza pictórica e a força simbólica de seus elementos. Nada, contudo, obsta o observador a optar apenas por uma de duas alternativas: ou deter-se na contemplação das imagens ou deter-se na reflexão sobre o seu simbolismo. No meu caso, optei por olhar e por pensar. 

Inicialmente, ofereci à obra apenas a minha atenção visual. Depois, no entanto, intrigado com o fato de alguns elementos tão díspares entre si ocuparem um mesmo espaço pictórico, lancei-me na tentativa de desnudar o simbolismo das imagens, de romper a superfície pictórica para atingir o seu fundo temático. 

Além da beleza plástica, constituída pelo que poderemos nomear de "sinfonia pictórica", essa tela apresenta o que poderemos expressar de "sinfonia semântica". O artista promoveu muito bem, nela, o encontro da forma com o conteúdo. Entretanto, saliento, mesmo que a riqueza de formas se encaminhasse para a "gratuidade", ainda assim, a tela seria bela. 

Com a Lingüística, aprendemos que o sentido de uma palavra nem sempre está nela própria, mas na sua relação com as demais que constituem o texto. A título de ilustração, recorrerei a duas frases: a) A criança não gostou da manga de sua camisa; b) A criança não gostou da manga azeda. O que significa o termo "manga"? Este possui sentido em si mesmo? Não. Na primeira frase, notamos que significa a parte da camisa que cobre o braço, ao passo que, na segunda, significa uma espécie de fruta. Donde concluímos que o que determina o sentido de "manga" na primeira frase é sua relação com o adjunto adnominal "de sua camisa", enquanto que o que determina o seu sentido na segunda é a sua relação com o adjetivo "azeda". 

Na tela "A Craviola" (assim como em muitas pinturas), os elementos não possuem sentidos em si sós, mas em suas relações mútuas, razão pela qual se o peixe, por exemplo, estivesse dentro de um outro contexto pictórico, poderia reportar-se a um outro significado, diverso do que possui na referida obra. Mas, finalmente, vamos à leitura desta: além da craviola, vemos uma boca de gramofone, algumas casas, folhas, um ou dois pássaros e alguns peixes. Analisando as relações que esses elementos estabelecem entre si, chegaremos à seguinte conclusão: repouso do lar onde músicas podem ser tocadas, música dos instrumentos, música do pássaro através de seu canto, peixes cujos movimentos na água lembram uma dança e folhas que dançam quando tocadas pelo vento. Por conseguinte, a obra possui uma riqueza de formas que, além de concorrem para um todo harmônico, confluem, a meu ver, para um mesmo centro temático: a música. 

Como sabemos, o século XIX presenciou, nas artes, o tenso embate entre forma e conteúdo. Com o Dadaísmo, cujo advento se deu em 1916, esse embate se acirra. O movimento dadaísta abarcou os campos literário e plástico e seu fim elementar era afugentar o conteúdo, expurgar do significante o significado. É certo que não é a relação, ou sua falta, entre forma e conteúdo que torna uma obra mais ou menos bela. Portanto, não se trata aqui de defender uma coisa ou outra, até porque é enriquecedora a própria luta que se trava no interior das manifestações artísticas. Porém, no caso da obra que acabamos de "ler", presenciamos a busca mútua entre forma e conteúdo, levada a efeito por uma apurada técnica e imaginação fecunda, o que a torna bela.

Enfim, não tenho dúvida de que o artista Sérgio Ramos, que, a julgar pelo seu currículo, já possui um nome consolidado, pelo menos, no cenário nacional, avançará com passos firmes - ou melhor, com pinceladas firmes - pelo futuro adentro.

RÚBIO ROCHA (amante das artes plásticas, da literatura, da música e do cinema). Setembro de 2013