OS DOIS “RAMOS”
Gosto de
imaginar a arte como uma imensa árvore de copa bem frondosa, em cuja acolhedora
sombra meu espírito repousa. E, aqui, neste texto, quero repousar minhas
considerações sobre duas expressões artísticas de dois “Ramos” dessa árvore: uma
do ramo literário e a outra do ramo pictórico. Porém, adianto, o fim primeiro
deste texto é a tentativa de compreender uma determinada pintura.
Na obra
“Angústia”, de Graciliano Ramos, o personagem central Luís, ao sabor de um
estado psicológico ambivalente e angustiante, no momento em que está roubando as
moedas de uma pobre velha, vê um gato sobre o muro. E aqui está a sua percepção
daquele felino: “Mexia-me, e não podia desviar os olhos das duas tochas que me
espiavam por cima do muro.” [...]. “Os olhos do gato cresciam, cresciam
extraordinariamente, iluminava o quintal todo.” Como vimos, a situação
psicológica de uma pessoa pode ser determinante para a forma como ela percebe o
que está na mira de seu olhar. O momento difícil em que se encontrava o
personagem Luís, com sua consciência recriminando seu próprio ato indigno,
emprestou à sua percepção toda uma maneira peculiar. É claro que, por trás
dessa percepção do personagem, enxergamos a centelha do talento do autor: o
gato com suas bolas de fogo contém um simbolismo - o peso da consciência.
Entretanto, há muitos
casos em que a percepção se entrega mais aos cuidados da objetividade. Só que,
mesmo nesses casos, o modo de perceber a realidade pode variar de pessoa para
pessoa, pois a percepção sempre é fruto de um movimento que parte do indivíduo
e repousa sobre um objeto, razão pela qual o modo como ele o apreende também se
cerca de elementos subjetivos, por mais esforço que faça para dar ao seu olhar
o máximo de objetividade. Ademais, a percepção, além de valores internos –
subjetivos -, possui também componentes constitutivos que são externos: valores
de ordem histórico-culturais.
Na minissérie
“Berlin Alexanderplatz”, de Fassbinder, um ato de uma personagem obteve três
percepções distintas: alguém considerou que ela dançou; um outro julgou que ela
andou e um terceiro, que ela marchou. Como vimos, a percepção ocorre em forma
de linguagem. Na famosa obra de Cervantes, Sancho Pança olha para um moinho de
vento e vê um moinho de vento, enquanto Dom Quixote o olha e vê um gigante
malfazejo. Todavia, mesmo Sancho vendo um moinho, sua percepção não está de
todo purificada de elementos subjetivos: ele pode ter visto um moinho bonito,
um moinho feio, um moinho imenso, um moinho pequeno, sendo que a sua percepção
está estreitamente vinculada à sua experiência de vida, a saber, à experiência
de já ter visto outros moinhos.
A percepção de
uma obra de arte, claro, amplia mais ainda essa diversidade perceptiva. A
realidade, como sabemos, está cercada de elementos objetivos, ao passo que a
arte perde esse contato com a objetividade. A Pintura, por exemplo, em sua
modalidade figurativa, remete ao real, mas, de uma forma ou de outra, burla a
sua lógica, as suas leis. E, nisso, surgem mais fissuras por onde elementos
subjetivos do observador se infiltram para compor uma percepção bem própria.
E um bom exemplo
desse se insurgir contra a lógica da realidade pode ser encontrado em uma
determinada tela de Sérgio Ramos. Ao entrar, pela primeira vez, no atelier
virtual desse artista, deparei-me com imagens de alguns de seus belos
trabalhos. Meu olhar, que, simultaneamente, captava uma multiplicidade pictórica,
foi atraído pela imagem de uma pintura em especial: uma pintura em que há um certo
gato. De imediato, ocorreu algo interessante na relação que se estabeleceu
entre o meu gesto de olhar e a imagem colhida por esse gesto. Explico: tive a
sensação de ser intimado a entrar em um espaço onírico, em perder total contato
com a realidade que me cercava. Foi como se aquele gato, durante o tempo em que
o contemplei, me privasse do mundo físico, envolvendo-me em seu mundo de
devaneio. A natureza do universo pictórico da tela me apanhou do mundo real em
que estava e me introduziu em seu interior. Como escreveu Walter Benjamin, “quem
se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve”.
O interessante é que essa não foi a obra de Sérgio de que mais gostei, mas foi
a obra em que mais me “dissolvi”. Foi como se eu não conseguisse fixar-me na
posição de observador, mantendo diante da imagem a minha autonomia. Não
consegui conjugar o deleite estético com reflexão sobre a pintura. No momento,
não conseguia reunir em palavras as sensações desencadeadas em mim pela
percepção dessa obra. Somente dias depois, é que consegui me recompor, me
“afastar” um pouco para projetar sobre ela o meu pensamento.
Apesar de sua
fixidez na tela, o gato se me apresentou como fugidio, volátil. Talvez fosse
mais correto dizer que minha percepção é que se moveu, pois vi um gato que saltava,
depois, um gato que levitava, depois, um gato que evadia da realidade para o
sonho e, finalmente, um gato totalmente puro de qualquer contato com o nosso
mundo físico. E somente agora é que pude desbastar a bruma que envolvia esse
meu movimento perceptivo, porque, no momento da apreensão, não compreendia bem
o que estava se passando comigo.
A sua natureza
vaporosa, portanto, pôs minha percepção em movimento. E o que
dizer de seu modo displicente e até indiferente de nos olhar? Onde está o “pulo
do gato” do talento de Sérgio? A meu ver, está no olhar do gato que desenhou:
não somos nós apenas que, por um lado, olhamos um gato que está imerso em seu
mundo onírico, mas é o gato que, por outro lado, de seu mundo, nos olha e nos
observa, dando a seu gesto um certo ar de enfado. Seus olhos, pois, sendo
apagados, não são bolas de fogo como os do gato do romance já mencionado. Mas,
não é um gato que está alheio à nossa realidade. Pelo contrário, ele a olha,
mas a olha não como se olhasse para um rato ou para um cachorro, mas como se olhasse
para uma gaiola vazia.
Observei que a composição
pictórica dos pés e das mãos, a posição do rabo e a altura do chão do qual está
(essa noção de distância do solo – se é que há solo – é determinada pela rala vegetação)
são o que dão ao felino a aparência de um gato que flutua, de um gato
transcendente que, a qualquer momento, parece querer se esfumar.
Para minha
surpresa, quando, minutos depois de contemplá-lo, cliquei sobre a sua imagem,
li o seu título: “Gato metafísico”. É interessante quando um artista consegue
despertar, nos observadores de suas obras, reações tão interessantes. O gato do
romance do escritor Ramos parece ser um gato sobrenatural que invade a
realidade. Já o gato do pintor Ramos não invade nossa realidade, mas, como é
dotado de natureza platônica, parece olhar, com certo descaso, para nossa
realidade imperfeita e degenerescente.
Alguém pode
indagar: será que o autor teve todas essas intenções? Creio que a pergunta mais
apropriada seria a seguinte: será que a pintura recepciona essa interpretação? Mas
poderemos, claro, falar em intenção autoral. Seguramente, poderemos afirmar que
Sérgio Ramos teve a intenção de pintar um gato que tivesse um caráter volátil,
totalmente apartado de nosso mundo físico, um gato que mexesse com nossa
percepção. Tanto é que, mesmo desconhecendo seu título, percebi, desde o
início, essa natureza no referido felino. E o próprio título também aponta para
essa intenção do autor.
Com o gato que
olha para o lado direito, Sérgio Ramos, acredito, também teve a intenção de
provocar, no observador, uma certa inquietação. O autor sabia exatamente que o
efeito de um gato que olhasse para a frente não produziria o mesmo efeito de um gato cujo olhar se dirigisse para o
observador. Do mesmo modo, poderemos afirmar que o outro Ramos teve a intenção
de conferir um contorno estético ao peso da consciência de seu personagem.
Quanto às demais
coisas, não vejo problema em creditá-las à peculiaridade de minha percepção. Se
há muita subjetividade em minha tentativa de compreender o “Gato metafísico”, talvez
isso tenha sido o resultado mais profícuo. Em certos pontos, posso, então, ter
olhado para um moinho de vento e ter enxergado um gigante. Em outros, contudo,
posso ter tomado de empréstimo o olhar de Sancho Pança. No entanto, na medida
em que a amplitude de sua significação não é fixa, pelo contrário, é vaporosa e
escorregadia, talvez a maior virtude da bela pintura de Sérgio Ramos seja
exatamente nos encher do espírito de Quixote.
Valendo-me de
outros termos, posso afirmar que, em que pese ter muito olhado e refletido
sobre o gato desenhado por Sérgio, estou longe de julgar que tenha apreendido o
seu “pulo”. Mas, como já nos ensina um adágio popular, o gato ensina tudo,
menos o seu pulo. Ainda mais em se tratando de um gato metafísico. Nós,
habitantes deste mundo sensível, que, segundo a teoria de Platão, não passa de
arremedo do perfeito mundo das ideias, não temos como compreender um gato
“platônico”. Então, é melhor até deixá-lo envolto em sua neblina de mistério,
porque, assim, sua beleza atinge o infinito. O melhor a fazer, portanto, é
olhá-lo sem a pretensão de compreendê-lo totalmente. Talvez até olhá-lo como a
criança olha para os vaga-lumes.
RÚBIO ROCHA – rubiorocha@hotmail.com
(amante das artes plásticas, da literatura, da música e do cinema).