O porquê de relembrar no momento exato ao acordar, mais cedo que o costume, do sonho-realidade em que estava literalmente passeando por um dos andares de uma grande casa, ou navio, ou por uma das espaçosas varandas do purgatório. Estavam dezenas de pessoas deitadas em sofás velhos, cada uma com um pequeno grupo da sua própria família. Vi a minha. De pessoas que já morreram cuidando das que estavam quase. Olhei e achei interessante. Continuei o passeio com as mãos entrelaçadas às costas. Não tinha mais nada que fazer, pois não pertencia àquele lugar, era somente um visitante. Depois do almoço, das louças lavadas, ouço Camargo Guarnieri em seus concertos profundamente tristes, ora nem tanto. A boxer me olha com olhos esbugalhados e sapientes. O que ela sabe que não sabemos? O fagote volta a tona e se mistura com o som do raspar das folhas. Cai a tarde. Amanhã serão os telefonemas e os impostos: outro tipo de sonho. Virgínia Woolf morreu por não aguentar o contínuo prazer de escrever palavra por palavra, saboreando-as como um bom vinho ou uma fumaça que evola redondamente do cachimbo. Está quase impossível achar alguém que ame o silêncio. Depois de ouvir o matinas de finados do padre José Maurício Nunes Garcia e de ler os textos de manifestos da revista De Stijl, onde “para o escritor moderno, a forma terá uma significação diretamente espiritual, ele não descreverá nenhum acontecimento, não descreverá nada: escreverá. A poesia asmática e sentimental – o eu e o ele – que é perpetrada em toda parte e principalmente (...), um resíduo fermentado de um tempo velho e que nos enche de tédio”, na tradução de Goulart de Andrade, penso em reescrever o início deste texto como se eu fosse mais um fantasma, ou seja, mais um passageiro daquela dita mansão. Aguardo o rocambole de goiabada ficar pronto: com receita transcrita para o velho caderno carcomido (perceberam o chiste?) e longe, em outro bairro, ouço de um falante rachado, a voz de uma música perversa que não é música, é só “tecnologia a serviço do lixo”. Também esse ruído da batedeira é ingrato, mas vale a goiabada vermelha e pastosa que logo vai virar lembrança. Desci à matinha, ar cheio de pernilongos. Tenho saudades do atelier que nunca tive. Acho que as maritacas irão fazer os seus ninhos lá. A boxer sumiu e o caminhão de brinquedo ficou sozinho, esquecido no cimentado, pois hoje é dia de aniversário do inimigo. Outro silêncio. O som surdo dos latidos dos cachorros vizinhos fazem as folhas balançarem.
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