sábado, 21 de setembro de 2013

A Craviola


O ENCONTRO DA SINFONIA PICTÓRICA COM A SINFONIA SEMÂNTICA

Casa, craviola, gramofone, peixe, pássaro e folha: em que espaço, em que lugar todas essas coisas se encontram? Para que ponto comum elas avançam? Para que ponto comum, por exemplo, um peixe e um pássaro podem se dirigir? A resposta a essas perguntas, acredito, colocará sob uma clara luz o vigor da imaginação posto em movimento por uma admirável inteligência, cujo resultado é a obra "A Craviola", de autoria de Sérgio Ramos. 

Nessa tela, onde vemos uma criativa riqueza de formas, as imagens são, a um só tempo, imagens, belas por si sós, e invólucros de um determinado conteúdo temático. Com outros termos, as imagens avançam sobre seus próprios limites e atingem o terreno do simbolismo, isto é, revestem-se de natureza simbólica, a qual, portanto, remete a uma outra coisa. Logo, na pintura em apreço, duas coisas convocam a nossa atenção: a beleza pictórica e a força simbólica de seus elementos. Nada, contudo, obsta o observador a optar apenas por uma de duas alternativas: ou deter-se na contemplação das imagens ou deter-se na reflexão sobre o seu simbolismo. No meu caso, optei por olhar e por pensar. 

Inicialmente, ofereci à obra apenas a minha atenção visual. Depois, no entanto, intrigado com o fato de alguns elementos tão díspares entre si ocuparem um mesmo espaço pictórico, lancei-me na tentativa de desnudar o simbolismo das imagens, de romper a superfície pictórica para atingir o seu fundo temático. 

Além da beleza plástica, constituída pelo que poderemos nomear de "sinfonia pictórica", essa tela apresenta o que poderemos expressar de "sinfonia semântica". O artista promoveu muito bem, nela, o encontro da forma com o conteúdo. Entretanto, saliento, mesmo que a riqueza de formas se encaminhasse para a "gratuidade", ainda assim, a tela seria bela. 

Com a Lingüística, aprendemos que o sentido de uma palavra nem sempre está nela própria, mas na sua relação com as demais que constituem o texto. A título de ilustração, recorrerei a duas frases: a) A criança não gostou da manga de sua camisa; b) A criança não gostou da manga azeda. O que significa o termo "manga"? Este possui sentido em si mesmo? Não. Na primeira frase, notamos que significa a parte da camisa que cobre o braço, ao passo que, na segunda, significa uma espécie de fruta. Donde concluímos que o que determina o sentido de "manga" na primeira frase é sua relação com o adjunto adnominal "de sua camisa", enquanto que o que determina o seu sentido na segunda é a sua relação com o adjetivo "azeda". 

Na tela "A Craviola" (assim como em muitas pinturas), os elementos não possuem sentidos em si sós, mas em suas relações mútuas, razão pela qual se o peixe, por exemplo, estivesse dentro de um outro contexto pictórico, poderia reportar-se a um outro significado, diverso do que possui na referida obra. Mas, finalmente, vamos à leitura desta: além da craviola, vemos uma boca de gramofone, algumas casas, folhas, um ou dois pássaros e alguns peixes. Analisando as relações que esses elementos estabelecem entre si, chegaremos à seguinte conclusão: repouso do lar onde músicas podem ser tocadas, música dos instrumentos, música do pássaro através de seu canto, peixes cujos movimentos na água lembram uma dança e folhas que dançam quando tocadas pelo vento. Por conseguinte, a obra possui uma riqueza de formas que, além de concorrem para um todo harmônico, confluem, a meu ver, para um mesmo centro temático: a música. 

Como sabemos, o século XIX presenciou, nas artes, o tenso embate entre forma e conteúdo. Com o Dadaísmo, cujo advento se deu em 1916, esse embate se acirra. O movimento dadaísta abarcou os campos literário e plástico e seu fim elementar era afugentar o conteúdo, expurgar do significante o significado. É certo que não é a relação, ou sua falta, entre forma e conteúdo que torna uma obra mais ou menos bela. Portanto, não se trata aqui de defender uma coisa ou outra, até porque é enriquecedora a própria luta que se trava no interior das manifestações artísticas. Porém, no caso da obra que acabamos de "ler", presenciamos a busca mútua entre forma e conteúdo, levada a efeito por uma apurada técnica e imaginação fecunda, o que a torna bela.

Enfim, não tenho dúvida de que o artista Sérgio Ramos, que, a julgar pelo seu currículo, já possui um nome consolidado, pelo menos, no cenário nacional, avançará com passos firmes - ou melhor, com pinceladas firmes - pelo futuro adentro.

RÚBIO ROCHA (amante das artes plásticas, da literatura, da música e do cinema). Setembro de 2013

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